Há muitos anos, na exposição “Mostra do Redescobrimento”, vi as obras de Arthur Bispo do Rosário e me emocionei profundamente. Uma profusão de bordados, talheres e palavras me transferiu para um outro lugar: o da emoção. Quando a arte toca de verdade, mostra para que veio.
Arthur Bispo do Rosário sofria de esquizofrenia, doença mental que acomete o indivíduo na idade adulta. Visões, vozes e alucinações transformam a vida de um esquizofrênico.
Durante a adolescência, Bispo do Rosário inicialmente trabalhou no setor de serviços gerais. Mais tarde, foi sinaleiro na Marinha, quando foi transferido para o Rio de Janeiro. Depois disso, dedicou-se ao trabalho de lavador de bondes e borracheiro na empresa Light, sendo demitido em 1937. Entrou na justiça contra a empresa e foi representado pelo advogado Humberto Leone, que ganhou a causa e se tornou seu melhor amigo. Nessa ocasião, foi morar com a família do advogado, trabalhando como empregado doméstico. Contudo, passou a ter alucinações que o levaram a ser internado na Clínica dos Leone e na Colônia Juliano Moreira. A boa relação com a família permitiu que ele a visitasse de tempos em tempos.
Numa véspera do Natal, após sonhar com sete anjos, passou a considerar-se um enviado, um representante de Deus. O estandarte, uma vestimenta por ele criada, sintetiza essa passagem de uma maneira maravilhosa. Ele consegue transformar em imagens e palavras a experiência que viveu e as vozes que ouvia.
Quando os sinais da sua “transformação” apareciam, solicitava que o trancassem na cela durante meses ou semanas, passando fome para se tornar santo. Era o período de maior criatividade e criação.
Dizia ter uma missão divina, a de recriar o mundo, o que tentava fazer através de suas miniaturas, bordados, talheres, papelões, embalagens, latas de bebidas e sucatas. O intuito era organizar seu mundo e fugir do caos que lhe era imposto.
No início, a linha obtida para fixar os materiais ou confeccionar os bordados era desfiada de sua farda ou lençol, o que justifica o uso do branco e do azul em suas obras mais antigas. Posteriormente, ele passa a ganhar outras cores.
Sua cidade natal, Japaratuba, tem tradição de bordado e também conta com manifestações culturais, folclóricas e religiosas que provavelmente influenciaram a obra de Arthur Bispo.
O “Manto da Apresentação”, confeccionado durante 30 anos, é de uma riqueza estonteante e foi feito para que ele o usasse no Dia do Juízo Final, quando fosse apresentar-se ao Reino dos Céus. Nele são encontrados bordados de navio, bicicleta, cadeado, mandala, etc. O interessante é que seu avesso também foi bordado com os nomes das pessoas escolhidas para a salvação do Apocalipse.
Mapas, faixas de misses, catalogações, mandalas permitiram que sua dor fosse transformada em arte. Não há como separar a vida de Arthur Bispo do Rosário de sua obra – uma pessoa excluída da sociedade, que morou numa instituição que não considerava ou valorizava o tratamento artístico, mas que soube utilizar a arte como meio de se proteger, reconstruindo seu mundo e reestruturando sua psique.
Suas obras já foram exibidas em vários museus nacionais e internacionais, e ele continua influenciando clínicas que visam à melhoria de seus pacientes, utilizando a arte como terapia e forma de adequação ao mundo. O delírio da morte permitiu que ele quisesse enfatizar sua existência, mesmo que de modo inconsciente.
Referências | Fotos (internet):
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2177-093X2015000200003